quinta-feira, 1 de maio de 2014

Um patriarca nas agruras do seu inverno - Sergio Rizzo

Um patriarca nas agruras do seu inverno

Sérgio Rizzo | Para o Valor, de São Paulo

Divulgação / DivulgaçãoHá algo de shakespeariano (e também de melodramático) na tragédia anunciada desse personagem confinado ao seu quarto e aos gabinetes do Catete
Um velhinho solitário, fisicamente fragilizado e dependente da família para saber o que ocorre à sua volta, saudoso dos tempos em que sua capacidade de liderança não era contestada - ou era, apenas para ser sufocada - e em que sabia encontrar saídas quando o acuavam. Desta vez, não parece ter ânimo nem mesmo para buscar uma estratégia de sobrevivência política, muito menos para executá-la. Age como quem entregou os pontos e aguarda, de maneira passiva, o desfecho da crise mais aguda de sua carreira política.
Em linhas gerais, é esse o perfil do melancólico Vargas que Tony Ramos recria em "Getúlio". Há algo de shakespeariano (e também de melodramático) na tragédia anunciada desse personagem palaciano que vemos confinado ao seu quarto e aos gabinetes do Catete, sem confiar plenamente no que lhe dizem os auxiliares, alguns dos quais considera traidores, mas sem força para afastá-los e reacomodar o círculo do poder. Parafraseando o romance de Gabriel García Márquez publicado em 1975, aqui não se trata mais do outono, mas do inverno do patriarca. Frio e doloroso.
De todas as contribuições artísticas ao resultado final de "Getúlio", nenhuma se aproxima da importância da atuação de Ramos. Seja lá qual for a impressão que o espectador levará para casa, terá necessariamente a ver com o registro que o ator imprime ao personagem - calcado em um cuidadoso estudo do próprio Vargas, mas descolado do que seria mera "imitação", em busca de soluções próprias (sobretudo no conhecido desenlace simultâneo de carreira e vida, em que não havia testemunha), para dar relevo humano a alguém que se confunde com mito. Pode-se gostar ou não do que Ramos faz, mas é preciso reconhecer a envergadura do trabalho.
O registro que Tony Ramos imprime ao personagem, longe de simples imitação, dá relevo humano a alguém que se confunde com mito
E o que Ramos faz, evidentemente, não traduz apenas suas opções como ator. Atribua-se ao diretor e argumentista João Jardim, à produtora Carla Camurati e aos roteiristas George Moura e Teresa Frota as linhas mestras dessa leitura da agonia de Vargas. Ao deixar clara a fragilidade física e emocional do protagonista, ela estabelece, por contraponto, o que seria a grandeza política do ato final - que o filme, ao usar nos letreiros de encerramento uma frase de Tancredo Neves (interpretado por Michel Bercovitch), sugere ter adiado a iminente intervenção militar de 1954 para o horizonte de eventos de 1964. Um ato heroico, portanto, do ex-ditador.
Não por acaso, o Vargas de Ramos diz em uma reunião palaciana, negando a sugestão de um auxiliar para que fizesse prisões arbitrárias, que já havia rasgado duas constituições, e que não poderia fazer isso mais uma vez. O filme investe na representação de um patriarca que, nas agruras do inverno, teria reconhecido o que fez na primavera e no verão de sua carreira política, durante a passagem autoritária pela Presidência. E que teria na agenda de seu mandato legítimo um compromisso, no país redemocratizado do pós-II Guerra Mundial, com a estabilidade política e com a sucessão presidencial por meio do voto popular.
No front contrário, o dos incendiários que pareciam apostar já em 1954 na ruptura institucional de dez anos depois, destaca-se a figura do jovem Carlos Lacerda - interpretado por Alexandre Borges com uma verve até discreta, perto do tom flamejante e agressivo do personagem verídico. Outras figuras-chave ganham interpretações condizentes com seu comportamento ambíguo e sinuoso na trama palaciana, como o general Zenóbio da Costa (Adriano Garib), ministro da Guerra nos últimos meses de governo, e o coronel Benjamin Vargas (Fernando Luis), irmão de Getúlio.
Diretor de ficção ("Amor?") com sólida experiência no documentário ("Janela da Alma", "Pro Dia Nascer Feliz", "Lixo Extraordinário"), Jardim investe no didatismo para tornar mais claros os eventos históricos a um espectador que não tenha pleno conhecimento deles, como letreiros que apresentam personagens. E celebra, no fim, a força das imagens documentais sobre qualquer recriação ficcional, ao inundar a tela com a impressionante multidão que carregou o corpo de Vargas - o calor das ruas, alimento do presidente, libertando-o, finalmente, da solidão invernal do Catete.


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