sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Tribunais não são capazes de acabar com guerras civis

Tribunais não são capazes de acabar com guerras civis

Por Thabo Mbeki e Mahmood Mamdani
  • AFP/Carl de Souza
    Pessoas deslocadas internamente (PDIs) carregam água enquanto caminham em direção à entrada de uma missão das Nações Unidas na República do Sudão do Sul (UNMISS), com base em Malakal, nesta quinta-feira (6). Em seus combates recentes, o país tem visto ondas de ataques de vingança brutal, como lutadores e milícia étnica usando a violência para saquear e acertar velhas contas. As Nações Unidas e os ativistas de direitos humanos têm relatado que atrocidades horríveis foram cometidas por ambos os lados
    Pessoas deslocadas internamente (PDIs) carregam água enquanto caminham em direção à entrada de uma missão das Nações Unidas na República do Sudão do Sul (UNMISS), com base em Malakal, nesta quinta-feira (6). Em seus combates recentes, o país tem visto ondas de ataques de vingança brutal, como lutadores e milícia étnica usando a violência para saquear e acertar velhas contas. As Nações Unidas e os ativistas de direitos humanos têm relatado que atrocidades horríveis foram cometidas por ambos os lados
O conflito no Sudão do Sul é apenas o mais recente exemplo de violência extrema que eclodiu após o colapso da ordem política. Mas, em vez de priorizar a reforma política, a comunidade internacional tende a se concentrar em criminalizar os autores da violência.

Desde o final da Guerra Fria, o mundo considera os Julgamentos de Nuremberg um modelo de resolução de problemas para eventos de extrema violência, uma vez que os julgamentos penais internacionais são a resposta preferencial a esse tipo de conflito. Essa crença comum deveria ter sido objeto de escrutínio nos últimos meses, após um número crescente de países membros da União Africana ter defendido sua retirada do Tribunal Penal Internacional. Em vez disso, o debate se concentrou nos motivos dos líderes africanos, e não na inadequação dos processos judiciais como resposta à violência em massa politicamente motivada.

O Tribunal Penal Internacional foi criado de acordo com o modelo do Tribunal de Nuremberg. Mas a violência em massa é uma questão mais política do que criminal. Ao contrário da violência criminal, a violência política envolve um eleitorado e é impulsionada por questões variadas, e não apenas pelos autores dos crimes.

A alternativa mais clara ao modelo de Nuremberg desde que esses julgamentos terminaram, em 1949, é o complexo conjunto de negociações conhecido como a Convenção para uma África do Sul Democrática (Codesa, pelas iniciais em inglês), que pôs fim ao apartheid na década de 1990. As negociações da Codesa envolveram o Partido Nacional, então no poder, o Congresso Nacional Africano (CNA) e várias organizações políticas. Por meio dessas negociações foi possível elaborar uma constituição que inauguraria uma nova ordem política pós-apartheid. A lição da Codesa é que, às vezes, é preferível suspender a questão da responsabilidade penal até que o problema político subjacente seja abordado.

Já Nuremberg fez parte de uma lógica contrária. Em um curto período de tempo, os aliados realizaram a limpeza étnica mais abrangente da história da Europa, não apenas redesenhando fronteiras, mas também deslocando milhões de pessoas através das fronteiras nacionais. O princípio primordial era o de que deveria haver um lar seguro para os sobreviventes. O termo "sobrevivente" era, por si só, uma inovação pós-holocausto: ele se aplicava às vítimas de ontem. Supunha-se então que os interesses das vítimas deveriam ser sempre colocados em primeiro lugar na nova ordem política.

Fundamental para o tipo de justiça praticada em Nuremberg era a suposição amplamente compartilhada de que não havia necessidade de que vencedores e perdedores (ou criminosos e vítimas) vivessem juntos após a vitória de um dos lados.
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Crise política vira conflito étnico no Sudão do Sul36 fotos

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16.jan.2014 - Crianças sul-sudanesas dividem a comida em acampamento próximo à fronteira de Joda, na localidade de Jableen. O embate entre as forças do presidente Salva Kiir e as do ex-vice-presidente Riek Machar é motivado pela disputa política e rivalidades étnicas Mohamed Nureldin Abdallah/Reuters

Mas os brancos e os negros da África do Sul tinham de viver juntos em um único país – assim como os hutus e os tutsis tinham que conviver após o genocídio em Ruanda.

As conversações da Codesa na África do Sul representaram o reconhecimento por parte de ambos os lados de que sua opção preferida já não estava disponível: nem a revolução (para os movimentos de libertação), nem a vitória militar (para o regime). Os dois lados foram rápidos em perceber que, quando se ameaça colocar seus oponentes no banco dos réus, eles não têm nenhum incentivo para se envolver em reformas.

Então, em vez de criminalizar ou demonizar o outro lado, como seria tentador fazer, os dois se sentaram para conversar. O processo foi pontuado por confrontos sangrentos, como o assassinato do popular líder do Partido Comunista Sul-Africano, Chris Hani, mas o resultado final descriminalizou os supostos responsáveis e os incorporou à nova ordem política. Dessa maneira, os inimigos mortais de ontem tornaram-se meros adversários.

Assim como a violência na África do Sul no início da década de 1990 era um sintoma de divisões profundas, o mesmo é válido em relação à extrema violência detectada nos dias de hoje no Quênia, no Congo, no Sudão e no Sudão do Sul. Julgamentos ao estilo dos de Nuremberg não são capazes de curar essas divisões. O que precisamos é de um processo político conduzido pela firme convicção de que não podem haver vencedores nem vencidos, apenas sobreviventes.

A transição da África do Sul foi precedida por um acordo político em Uganda ao final da guerra civil do país, que durou de 1980 a 1986. A solução política assumiu a forma de um acordo de partilha de poder, conhecido como "base ampla", que deu cargos ministeriais aos grupos de oposição (incluindo os principais membros do regime de Idi Amin) que concordassem em renunciar à violência.

O processo de paz em Moçambique descriminalizou o Renamo, um grupo de guerrilha oposicionista que era apoiado e aconselhado pelo regime do apartheid e cujas práticas incluíam o recrutamento de crianças soldados e a mutilação de civis. Os comandantes e os principais membros do Renamo foram trazidos para o processo político e convidados a concorrer nas eleições nacionais e locais.
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República Centro-Africana vive conflitos entre muçulmanos e cristãos83 fotos

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9.dez.2013 - Um homem ferido espera por socorro durante uma operação de desarmamento executada por soldados franceses em Bangui, na República Centro-Africana, nesta segunda-feira (9). Tropas francesas ocupam postos de controle na capital e procuram por armas em uma operação para desarmar rivais cristãos e mulçumanos, responsáveis por centenas de mortes desde a semana passada Leia maisSia Kambou/AFP

O acordo de "base ampla" em Uganda, a transição sul-africana e a resolução do pós-guerra em Moçambique foram alcançados antes de o Tribunal Penal Internacional ter sido criado.

Há um tempo e um lugar para os tribunais, como na Alemanha após o nazismo – mas não em meio a um conflito ou em um sistema político que não funciona. Os tribunais não servem para inaugurar uma nova ordem política após guerras civis, pois eles só podem entrar em ação depois que a nova ordem já estiver em vigor.

Como os julgamentos criminais são movidos pela lógica do "vencedor fica com tudo" – ou você é inocente ou você é culpado –, aqueles que são considerados culpados e são punidos como criminosos têm seu direito à vida negado em meio à nova ordem política. E esse pode ser um resultado perigoso, como os sul-africanos de ambos os lados perceberam quando se sentaram para negociar o fim do apartheid.

Nas guerras civis, ninguém é totalmente inocente e ninguém totalmente culpado. E a violência extrema raramente é um ato isolado. Mais frequentemente do que não, ela faz parte de um ciclo de violência. As vítimas e os agressores muitas vezes trocam de lugar, e cada lado tem uma narrativa de violência. Reivindicar simplesmente a justiça das vítimas, como faz o Tribunal Penal Internacional, é arriscar a continuação da guerra civil.

Os direitos humanos podem ser universais, mas os erros humanos são específicos. Pensar profundamente sobre os erros humanos é lutar contra os problemas que dão origem a atos de extrema violência, o que significa se fixar menos nos autores dos crimes e em atrocidades específicas e ficar mais alerta para as questões que impelem os ciclos contínuos de conflito, dos quais as comunidades precisam se livrar. Para que isso aconteça, não se pode ficar rotulando permanentemente quem são as vítimas ou os agressores. Em vez disso, deve haver um processo político no qual todos os cidadãos – vítimas, agressores e espectadores de ontem – sejam capazes de encarar uns aos outros como os sobreviventes de hoje.

A maioria das sociedades colonizadas experimentou, em algum momento, uma ou outra forma de guerra civil – muitas vezes, como resultado de debates sobre quem foi cúmplice do domínio colonial e quem não foi. Essas sociedades tendem a apresentar rachas com mais frequência quando se tenta definir quem pertence ou não pertence à nação, e quem se qualifica para conseguir a cidadania.

Os Estados Unidos também tiveram uma guerra civil. Os problemas do país já eram visíveis quase um século antes, no momento da independência. Os norte-americanos fariam bem em lembrar que a liderança política de seu país foi sábia o suficiente para descartar a realização de processos judiciais para os derrotados ao final da Guerra Civil e, em vez disso, optou pela reconstrução.

(Thabo Mbeki, presidente da África do Sul entre 1999 e 2008, atuou como enviado da União Africana no Sudão e no Sudão do Sul. Mahmood Mamdani é diretor executivo do Instituto de Pesquisa Social Makerere, em Kampala, Uganda, e professor da Universidade de Columbia).
  • A violência armada entre grupos rivais está provocando o deslocamento de milhares de famílias
Tradutor: Cláudia Gonçalves

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