segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

No banheiro - Tati Bernardi

folha de são paulo

Sugeri um ano novo reservado e romântico em Petrópolis: só livros, filmes e amor. Escolhemos o quarto com florzinhas vermelhas e amarelas na janela. Eu levei "A praia" do Ian McEwan e ele levou o filme "Agonia e Êxtase". Acabou que eu não consegui largar uma revista Vogue francesa antiga e ele um joguinho maldito no Ipad "em que se pode ser o técnico do time".
Onze e meia a gente fugiu do restaurante, com medo de ter que dar abraços frouxos e impessoais nos outros seis casais hospedados na pousada. Todos com mais de setenta anos e com os pigarros bem piorados pelas risadas forçadas (e eu idealizando a velhice como uma fase maravilhosa em que não nos obrigamos mais a ser feliz). Nos trancamos no quarto, apagamos as luzes, tiramos a blusa...dai acendemos de novo a luz pra matar uma barata.
Meia noite em ponto, parei abruptamente um beijo apaixonado para beber água. Virei uma garrafinha inteira que estava no criado-mudo e arrotei. Como é que uma lady faz isso justo numa noite tão especial com o mozão? Eu parecia estar possuída. Meia noite e dois meu intestino sentiu o primeiro golpe macabro. Um pano de chão sendo torcido pelas mãos de um lutador de vale tudo com sede de vingança. Talvez eu morresse. Acima do meu estômago, milhões de barquinhos eram devorados por um ciclone biliar. Enjôo era algo tão mirim perto do que eu sentia que cheguei mesmo a cogitar procurar um sinônimo mais robusto no Google do Iphone.
Delicada, feminina e misteriosa, pedi que ele esperasse uns segundinhos. Meia noite e quatro eu era a protagonista do Exorcista. Vomitei na velocidade da luz e nessa mesma intensidade continuei me expurgando também por outras vias. Me lancei dramaticamente ao chão, numa pré-síncope, na tentativa teatral de coibir um provável e súbito desmaio. Despertei com meu discreto e charmoso namorado socando a porta do banheiro "me deixa entraaar porraaa, eu não tô legal!".
Foi o peixe do almoço. Foi, foi ele. É intoxicação né? Só pode ser. Eu tô com medo. Eu também. Mas eu tô com muito medo, até tomei um Rivotril, mas vomitei ele. Vai ficar tudo bem, eu cuido de você. Cuida mesmo? Promete? Hein? Cê tá me ouvindo? Não, desculpa, eu desmaiei. Vamos ter que processar o restaurante. Mas você lembra o nome dele? Eu não lembro nem o meu nome nesse momento. Se eu morrer, você cuida da minha cachorra? Se você morrer, eu vou morrer cem vezes, porque comi meu prato todo e mais metade do seu prato. Não fala em comer. Eu não vou comer nunca mais. Não morre, eu preciso de alguém que me leve pra casa. Liga na recepção e pede água de coco. A mulher da recepção tava bêbada na festa e ela tem setenta e quatro anos. Quem vai levar a gente pro hospital se todo mundo tem noventa anos nesse lugar? E dai? Velho não dirige? Mas velho vai enxergar o caminho essa hora? Imagina estar morrendo e ainda sofrer um acidente? Eu não quero ir pro hospital. Eu não tô sentindo minha perna. Eu dei um Google em intoxicação. E aí? É essa parada aqui mesmo.
Meia noite e meia estávamos os dois seminus, suados, em transe, deitados no chão do banheiro. Nossa relação de mágicos e inabitáveis dois meses de namoro ofertava agora o silêncio confortável e triste de uma intimidade madura. Pobre da noiva que chama "falta de sorte" ver o vestido antes da festa. Tínhamos visto coisa muito pior. Nossas mãos geladas tinham parado de se acariciar através de um fiozinho desritmado de pulsação e dignidade. Talvez eu estivesse morta. Talvez o amor estivesse morto.
Eu tô aqui com você, tá? Eu também. De verdade. Tá. Feliz ano Novo. Pra você também. Foi tão bonito.
tati bernardi
Tati Bernardi é escritora, redatora, roteirista de cinema e televisão e tem quatro livros publicados.

Nenhum comentário:

Postar um comentário