quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

Pornomania - Chico Felitti

folha de são paulo

Novo filme de Lars von Trier esquenta onda de filmes de arte com sexo explícito


CHICO FELITTI

DE SÃO PAULO

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Trinta e oito falos flácidos, de todas as cores e tamanhos, passam pela tela em 30 segundos. O filme não está nos pulguentos cinemas de sexo explícito, e sim em circuito nacional: "Ninfomaníaca" entra em cartaz nesta sexta.
Como o título insinua, o novo filme do dinamarquês Lars von Trier é sobre uma mulher viciada em sexo.

A obra mostra, sem tarja preta ou contraluz, a história sexual de Joe. A inglesa comum é interpretada por Charlotte Gainsbourg quando adulta, por Stacy Martin na fase jovem e por atrizes-mirins a partir dos dois anos, quando nasce seu desejo.
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A inglesa Stacy Martin dá uma aula de educação sexual em cena de 'Ninfomaníaca'
A inglesa Stacy Martin dá uma aula de educação sexual em cena de 'Ninfomaníaca'
"É claro que foi tudo assustador. Eu precisava ter certeza de que os atores não fariam as cenas de sexo. Quando tive, fiquei tranquila", diz Gainsbourg em entrevista disponível no site do filme.
As partes pudendas na tela são de dublês pornô, para a tristeza dos fãs de Shia LaBeouf, que faz o desvirginador (por encomenda) de Joe.
Von Trier, diretor de "Anticristo" (2009) e "Melancolia" (2011), entregou um filme pornô de mais de cinco horas, que foi limado e desmembrado em dois episódios de quase duas horas —o segundo deve estrear em março.
E adotou uma postura come-quieto com a obra. Não dá entrevistas desde que, em maio de 2011, disse "eu entendo Hitler" no festival de Cannes, no qual desde então é "persona non grata".
CORES QUENTES
O diretor bad boy não está só. Há quatro outros longas com cenas eróticas em cartaz: "Azul É a Cor Mais Quente", "Jovem e Bela", "Tatuagem" e "Um Estranho no Lago".
São filmes de arte realistas, defendem especialistas. "Não é uma cena de sexo explícito que faz um filme pornográfico, assim como não é uma cena com pessoas cantando que define um filme como musical", diz o sociólogo Rodrigo Gerace, que publica em 2014 o livro "Cinema Explícito".
A divisão, entretanto não é muito clara nem para os diretores. Alain Guiraudie, de "Um Estranho...", queria pôr dois atores pornôs para protagonizar. Só evitou a sodomia explícita porque os dublês se negaram a transar sem camisinha, como estava no roteiro e ele queria preservar.
Já "Azul", filme sobre o amor de duas jovens na França, ganhou a Palma de Ouro em 2013 mesmo depois de uma das protagonistas dizer ter se sentido "uma prostituta" nas filmagens.

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7 MINUTOS tem a cena de sexo lésbico mais vigorosa de 'Azul É a Cor Mais Quente', em que foram usadas próteses de vulvas
Espectadores sentiram outras coisas. "Desperta a quinta série em você esse tipo de filme", diz o publicitário Gabriel Altoé, que teve um acesso de gargalhadas em "Azul" no Reserva Cultural.
"Aquela coisa de esfrega a parte uma na cara da outra e as pessoas ao redor paradas, como se nada estivesse acontecendo, olhando pra arte, me fez perder a linha." Foi expulso da sala. No cinema do shopping Frei Caneca, um casal foi vaiado ao fazer som de nojo durante a cena.
Hilton Lacerda, diretor do filme brasileiro "Tatuagem", vê peso político na sacanagem. "Eu acho superimportante a desmoralização. Mostrar um pênis parecia mais violento que mostrar uma arma que mata. Não é."
Tanto que pediu classificação etária para 16 anos, quando colegas davam a exigência de maioridade como certa. Conseguiu —enquanto "Azul" e "Ninfomaníaca" ficaram só para adultos.
E a polêmica em torno dos pelados do seu filme? "Polêmico é alguém achar sexo no cinema polêmico em 2014."

CRÍTICA - DRAMA
Dinamarquês retrata sexualidade sem afeto, mas em busca de sentido
INÁCIO ARAUJOCRÍTICO DA FOLHAAntes, as pessoas cultivadas diziam não assistir aos filmes brasileiros "porque só têm sexo". Agora, será o caso de inverter o discurso: não verão filmes brasileiros "porque só eles não têm sexo".
É o que nos deixam os estrangeiros "Azul É a Cor Mais Quente", "Um Estranho no Lago" e, agora, "Ninfomaníaca", primeira parte do pornô prometido pelo dinamarquês Lars von Trier --e que completaria o que já denominaram "trilogia da depressão" (com "Anticristo" e "Melancolia").
São filmes que solapam a cuidadosa arquitetura da indústria (americana, em particular), em que o normal e o pornô devem fingir que são de mundos diferentes, como se a sexualidade só pudesse ser exercida verbalmente.
Com uma hora e cinquenta minutos, esta é a primeira parte das aventuras de Joe --a segunda terá duas horas e dez minutos, mas trata-se, no dizer de Von Trier, mestre do marketing cinematográfico, de "versão censurada".
Joe (Charlotte Gainsbourg) é encontrada num beco por Seligman (Stellan Skarsgard), sensível o bastante para acolher a mulher batida e abatida. E não uma qualquer: Joe garante-lhe que não é exatamente uma boa menina.
A primeira parte do filme vai se dedicar às experiências eróticas que Joe narra e Seligman tenta compreender. Para Joe, a sexualidade se mostrará evidente e misteriosa, prazerosa e tortuosa.
Podemos observá-la em dois aspectos: a iniciação sexual é o mais estranho deles, pois envolve uma competição, com uma amiga, para ver quem transa mais durante uma viagem de trem.
Estamos, portanto, longe da ideia de afeto, mas também da de prazer. Assim como em "Anticristo" e "Melancolia", parece haver algo de irrecuperável no humano. A sexualidade, em Joe, não é angústia, felicidade, gozo. Não é nada, a rigor. É um ato desprovido de sentido, embora sempre em busca de sentido.
O segundo aspecto, ao contrário, é carregado de sensibilidade e envolve a infância, a ligação com o pai e a falta de ligação com a mãe. Ligações pesadas, à maneira nórdica, de que resultará uma das cenas mais fortes, no leito de morte do pai (Christian Slater).
Algo de muito próprio no cinema de Von Trier, além do humor, se manifesta com clareza: as relações pessoais, em particular as familiares, são movidas por forças incontroladas (talvez incontroláveis), misteriosas, que se manifestam sob as convenções.
Isso faz delas eventos muito particulares e, em especial em "Ninfomaníaca", daqueles que o espectador tateia, em busca de um significado, mas nunca escapa ao encantamento estranho das imagens.
Em "Ninfomaníaca", o que se vê são cenas de "pornô soft". Versão censurada? Talvez. Em todo caso, nessa fase mais juvenil de Joe, quem se destaca é Stacy Martin, atriz de uma beleza que lembra Sylvia Kristel, artista que teve a carreira arruinada pelas cenas de sexo de "Emmanuelle". Espera-se que Martin tenha sorte melhor.

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