sábado, 15 de fevereiro de 2014

A ditadura recontada - Raquel Cozer

folha de são paulo
A ditadura recontada
Após o elogiado 'K.', Bernardo Kucinski publica contos sobre repressão, raro exemplar da atual produção ficcional sobre traumas do período
RAQUEL COZERCOLUNISTA DA FOLHA
"Você vai voltar pra mim" é uma daquelas falas propensas a enternecer o interlocutor --a não ser, é claro, que venha de alguém como um agente da repressão após infindáveis sessões de tortura.
A narrativa em que ela aparece nomeia o novo livro do jornalista e cientista político Bernardo Kucinski, 76, "Você Vai Voltar pra Mim e Outros Contos". Foi inspirada em depoimento que o autor ouviu, no fim de 2013, ao assistir a uma sessão da Comissão da Verdade paulista.
São 28 histórias que têm a ditadura como pano de fundo e marcam a chegada do paulistano à Cosac Naify, após elogiada e tardia estreia na ficção com o romance "K.", (Expressão Popular, 2011) --que ganha, simultaneamente, edição pela nova casa.
Lançado sem alarde por uma editora independente, "K." teve duas edições esgotadas (somando 5.000 cópias), foi traduzido para o alemão, o espanhol e o inglês (com edições previstas em hebraico e italiano) e concorreu a dois dos maiores prêmios literários do país, o Portugal Telecom e o SP de Literatura.
Um diferencial do romance foi sua temática: um pai em busca da filha desaparecida nos anos de repressão, recriação de um trauma familiar de Kucinski, cuja última notícia da irmã foi sua prisão pelos militares, em 22 de abril de 1974, em São Paulo.
No ano em que se completa meio século do golpe de 1964, com as livrarias recebendo diversas obras de não ficção a respeito da ditadura, "K." e "Você Vai Voltar pra Mim e Outros Contos" são raros exemplos da produção ficcional feita hoje no país sobre traumas daquele período.
Apesar de grandes romances sobre o tema, lançados inclusive durante a ditadura --como "Quarup", de Antonio Callado, e "Pessach: A Travessia", de Carlos Heitor Cony, ambos de 1967--, a literatura brasileira atual é bem mais comedida nesse sentido que a feita nos vizinhos Argentina, Uruguai e Chile.
"Acredito que o Brasil tenha uma incapacidade de enfrentar a ditadura num contexto maior, o que tem a ver com uma tradição brasileira de elaborar pouco os traumas sociais", diz o professor da Unicamp Marcio Seligmann, que por quatro anos coordenou um grupo de pesquisa sobre cultura e violência.
O professor de história da USP Marcos Napolitano lembra que, após aquele primeiro olhar dos anos 1960, a ficção nacional passou por uma fase de "balanço da derrota", em obras como "Zero" (1975), de Ignácio de Loyola Brandão, e "Em Camera Lenta" (1977), de Renato Tapajós.
"Daí para a frente floresceram as memórias, mas na ficção o tema foi sendo deixado de lado, com poucas exceções. Na América Latina veem-se mais exemplos do trauma derivado, de quem viveu a época, mas não passou diretamente pelos fatos", diz.
Para Kucinski, a abordagem literária permite mostrar, com mais clareza do que na não ficção, o clima da época.
Permite também enfrentar tabus, como o do machismo predominante no período --num dos contos, "Recordações do Casarão", dois amigos lembram um caso em que uma militante foi obrigada pelo namorado a abortar para não prejudicar a causa.
"O que me comove é que, quando você pega histórias individuais, é sempre muito chocante", diz Kucinski.
VOCÊ VAI VOLTAR PRA MIM E OUTROS CONTOS' e K.'
AUTOR Bernardo Kucinski
EDITORA Cosac Naify
QUANTO R$ 29,90 (192 págs.) cada um

CRÍTICA HISTÓRIA
Livro de Carlos Chagas narra traições na cúpula do regime
Em algumas passagens, o livro parece um acerto de contas de Chagas com aquela época
(RICARDO MENDONÇA)DE SÃO PAULO
Na literatura sobre a ditadura militar, convencionou-se chamar o Ato Institucional nº 5, de 1968, de "o golpe dentro do golpe". Nessa concepção, o golpe original é o de 1964, quando os militares expulsaram João Goulart. E o golpe "de dentro" é o endurecimento do regime, com o fechamento do Congresso. Ambos os golpes são principalmente contra a sociedade.
Dessa forma, o título "A Ditadura Militar e os Golpes Dentro do Golpe: 1964-1969", livro que o experiente jornalista Carlos Chagas está lançando, pode induzir ao erro.
Só após algumas dezenas de páginas percebe-se que os golpes aos quais ele se refere não são aqueles perpetrados contra a sociedade, mas os de militares contra militares: as sabotagens internas, as manobras desleais, as traições.
Chagas era um jovem repórter de "O Globo" no início dos anos 60, numa época em que o Brasil era bem diferente. Ele lembra como era fácil entrevistar Tancredo Neves em 1962, quando o então primeiro-ministro vivia no Flamengo: "Bastava cumprimentar o porteiro, subir ao 6º andar, apresentar-me para a empregada doméstica e aguardar na varanda que o primeiro-ministro aparecesse".
Alguns anos depois, Chagas aceitou um convite de Costa e Silva e tornou-se secretário de Imprensa da Presidência --cargo equivalente ao que sua filha Helena Chagas ocupava até janeiro no ministério de Dilma Rousseff.
Em algumas passagens, o livro parece um acerto de contas de Chagas com aquela época, como se tentasse justificar seu ingresso no governo no instante de maior endurecimento. Ele afirma que só aceitou o convite porque estava convencido de que Costa e Silva patrocinaria o início de um processo de descompressão. Hoje é fácil perceber que não foi assim. Mas na época lideranças da oposição também faziam essa avaliação.
Para o jornalista, o maior de todos os golpes internos foi a solução que os militares encontraram em 1969 para não entregar o poder ao vice Pedro Aleixo, um civil, após o afastamento de Costa e Silva por motivos de saúde. No lugar de Aleixo, quem assumiu foi uma Junta Militar.
Fiel ao ex-chefe, Chagas garante que, no instante em que foi afastado, Costa e Silva estava prestes a revogar o AI-5.
Outra impressão equivocada sugerida pelo título é sobre o período abordado no livro. De suas quase 500 páginas, mais de 400 tratam do biênio 1964-65. Os quatro anos seguintes ficam espremidos nas páginas finais.
Feitas essas ressalvas, "A Ditadura..." é uma obra fácil e interessante de ser lida. Ele guia sua narrativa a partir do noticiário da imprensa diária, reproduzindo e contando bastidores das reportagens feitas no calor dos eventos.
Em várias passagens, ele coloca o ex-patrão Roberto Marinho e um de seus irmãos, Rogério Marinho, em situação desconfortável, ora descrevendo uma capa de "O Globo" após o golpe, ora resgatando reportagens de sua autoria censuradas por Rogério.
A DITADURA MILITAR E OS GOLPES DENTRO DO GOLPE: 1964-1969
AUTOR Carlos Chagas
EDITORA Record
QUANTO R$ 60 (490 págs.)
AVALIAÇÃO regular
A estante de 1964
Livrarias recebem obras que reveem o período da ditadura em ano que marca o cinquentenário do golpe
O cinquentenário do golpe de 64, no próximo dia 31 de março, estimulou editoras a colocarem no mercado novos estudos e obras revistas sobre o regime militar no Brasil (1964-1985). Livros como "A Ditadura que Mudou o Brasil" (Zahar), organizado por Daniel Aarão Reis, Marcelo Ridenti e Rodrigo Patto Sá Motta, e "1964:História do Regime Militar Brasileiro" (Contexto), de Marcos Napolitano, reveem aquele período turbulento, seus antecedentes e seu legado para o país.
    Pesquisa aborda a atuação de editoras de oposição à ditadura
    'Livros Contra a Ditadura' vê florescimento de obras contestadoras
    RAQUEL COZERCOLUNISTA DA FOLHA
    Com tantos recados políticos transmitidos via festivais de música na TV, tantas entrelinhas nos textos de jornais e revistas, e tantas peças e filmes contestadores, a produção de livros não foi das áreas intelectuais mais visadas no período da ditadura.
    Se desde os anos 1960 filmes, discos e peças eram escrutinados, só em 1970 o Ministério da Justiça passou oficialmente a examinar livros, como relata Sandra Reimão em "Repressão e Resistência: Censura a Livros na Ditadura Militar" (Edusp, 2011).
    No entanto, embora o alcance limitado de público reduzisse o interesse do Estado nessa área, as editoras que se opuseram ao regime deixaram seu legado no país.
    Foi esse cenário que o historiador e editor Flamarion Maués investigou em seu mestrado na USP, apresentado em 2006, trabalho que originou o recém-lançado "Livros Contra a Ditadura: Editoras de Oposição no Brasil, 1974-1984" (Publisher).
    Maués identificou 40 editoras de oposição no período, consideradas aí tanto as mais explícitas, com obras críticas à situação do país, como outras que ajudaram a colocar nas listas de mais vendidos, até o começo dos anos 1980, autores como Marx e Lênin.
    Apenas oito das editoras levantadas por Maués poderiam ser consideradas médias ou grandes (Alfa-Omega, Brasiliense, Civilização Brasileira, Codecri, Global, Paz e Terra, Vozes e Zahar).
    Das outras 32, pequenas ou micro, mais engajadas, saíram as três que estão no centro da pesquisa de Maués: a Ciências Humanas, ligada ao Partido Comunista, a Brasil Debates, ao Partido Comunista do Brasil, e a Kairós, ao grupo trotskista Libelu.
    Estas publicavam e vendiam pouco, já que somavam às tradicionais dificuldades de distribuição das independentes o fato de atuarem de maneira semiclandestina.
    O período subsequente à pesquisa, marcado por uma inflação alta e uma redução no interesse por obras políticas, levou à extinção muitas casas do período. Outras, como a Global e a L&PM, souberam explorar nichos para crescer, como os clássicos, no caso da primeira, e os livros de bolso, no da segunda.
    Mas alguns sucessos, como "A Ilha" (Alfa-Omega, 1975), de Fernando Morais, e "O que É Isso, Companheiro?" (Codecri, 1979), de Fernando Gabeira, ambos hoje editados pela Companhia das Letras, deram o pontapé numa tendência ainda perceptível e vendável no mercado.
    "Especialmente a partir da metade da década de 1970, passados os anos mais duros do regime, começam a florescer os chamados livros-reportagem, marcando o renascimento de um trabalho de levantar o tapete e mostrar o que estava escondido, e grandes relatos pessoais de impacto político", diz o autor.

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