terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Eduardo Coutinho deixa filme sobre adolescentes

folha de são paulo
DEPOIMENTO
Encantavam o mau humor persistente, a magreza de santo, o cigarro e a ironia fina
Era sedutor, apesar de tímido, e por vezes cruel
FERNANDA TORRESCOLUNISTA DA FOLHAConheci Eduardo Coutinho em 2003, no laboratório de roteiros que o Festival de Sundance promoveu no Brasil em parceria com o Sesc São Paulo. O "Redentor" (2004) não teve a sorte de contar com ele como analista, mas o sistema de imersão tratou de nos aproximar. Convivíamos nas horas vagas, nos longos jantares onde todos disputavam a sua atenção.
Eduardo Coutinho já era o autor de "Cabra Marcado para Morrer" (1985) e "Edifício Master" (2002), mas o que encantava eram o mau humor persistente, a magreza de santo, o cigarro inseparável e a ironia fina.
Uma noite, a conversa evoluiu para Tchékhov. Contei que havia feito uma adaptação de "A Gaivota" que jamais funcionou a contento, depois de levantada a cortina. Nossa melhor apresentação, confessei, foi um ensaio geral, antes de botarmos os pés no teatro. "Tchékhov não foi feito para estrear", disse ele cheio de razão.
"Jogo de Cena" explorava a fronteira entre o falso e o verdadeiro, ficção e realidade. Nele, atrizes e mulheres reais se alternam narrando umas as histórias das outras.
Duvidei da minha capacidade de chegar a um resultado aceitável desde o dia em que recebi o material. Era uma batalha perdida, chegar a uma interpretação convincente de um depoimento que se mostrava tão fresco na boca de quem o viveu.
O fato de ser uma atriz conhecida depunha contra. Era falso porque partia de mim, que vivo de fingir.
Mesmo descrente, me empenhei na tarefa. No dia marcado, me dirigi até o teatro onde Coutinho filmava.
Esperei concentrada no camarim, ele disse que me chamaria com a câmera já valendo. Subi as escadas imbuída da personagem.
Equilibrada no delicado fio, me sentei na cadeira em frente à câmera em estado de representação.
Coutinho soltou uma exclamação em tom alto: "Nossa, você falou igual a ela". Eu tentei continuar, mas ele insistiu em me chamar pelo meu nome. Fui tomada por um pânico e tive vergonha de estar ali.
Coutinho não percebeu e continuou a me perguntar onde ele deveria se posicionar, falou da sua falta de jeito, pediu que eu dissesse a hora de começar, mas a hora já havia passado. Esfriei por completo. Não teve volta.
Tentei atacar a fala, mas um diabo insistente sussurrava ao meu ouvido: "Está escrito na sua cara que é mentira!". Parei. Foi melhor parar, admitir que eu não acreditava no que estava dizendo.
Como velho comunista que era, acho que Coutinho, embora carinhoso, tinha muitas reservas com relação a pessoas como eu. Ele usava palavras como "estrela" e "celebridade" para me definir. Era muito sedutor, apesar de tímido, e muitas vezes cruel nos comentários.
Ele me mostrou o material com muita ansiedade, tinha receio de que eu não liberasse, que ficasse ofendida, ou tivesse problemas de me mostrar frágil. Reagiu aliviado e surpreso quando viu que eu não criaria problemas.
Fiel ao que ouvi dele no laboratório do Sundance, aceitei tornar pública a amarelada histórica. Coutinho eternizou o torturante ensaio. Na maior parte do tempo, é naquele estado em que vivem os atores, na infinita busca.
Eu sempre achei que a trava dele com o mundo, a inadequação confessa, a dedicação ao fumo, o olhar severo, embora humorado, fosse herança da esquerda. Como também achei que o cigarro o mataria.
Nem uma coisa nem outra. A delirante realidade, como nos seus melhores filmes, superou a ficção.
    Coutinho deixa filme sobre adolescentes
    Cineasta, assassinado anteontem, filmou estudantes da rede pública do Rio; documentário estava em pós-produção
    Mostra na Cinemateca homenageará o diretor; também sairá versão restaurada de 'Cabra Marcado para Morrer'
    GUILHERME GENESTRETIJULIANA GRAGNANIDE SÃO PAULOO cineasta Eduardo Coutinho, morto anteontem, aos 80, deixou um último trabalho inacabado: o documentário "Palavra", sobre o universo dos adolescentes, que estava em pós-produção. O diretor, assassinado pelo filho a facadas, segundo a polícia, seria enterrado ontem.
    No projeto filmado entre novembro e dezembro, Coutinho entrevistou cerca de 30 alunos do ensino médio da rede pública carioca.
    "Coutinho sentava para conversar com os garotos e dizia: Quero ser como um marciano que faz perguntas absurdas, como se não soubesse nada do mundo'", diz Jordana Berg, montadora de seus últimos longas e à frente da edição de "Palavra".
    A tática do cineasta, afirma Jordana, era fazer "perguntas que pareceriam infantis" como "para que serve o dinheiro?" e "por que você estuda?". Ele deixava, como era comum em seus trabalhos, que os personagens falassem à vontade.
    Para ser lançado, o filme ainda depende do aval do também documentarista e João Moreira Salles, sócio da VideoFilmes, produtora do documentário. Procurado pelaFolha, o produtor não quis comentar o assunto.
    Coutinho deixou com Jordana a listagem de tudo o que foi gravado, com algumas anotações sobre o que deveria ser descartado e o que gostaria que fosse aproveitado.
    Em uma das marcações na decupagem, o cineasta pedia para excluírem o trecho em que ele dizia a um dos entrevistados que o filme "provavelmente não daria certo".
    "Liguei para ele na sexta-feira e disse: Mas como jogar isso fora?' Propus que começássemos o filme com isso. Ele concordou", diz Jordana.
    HOMENAGEM
    Coutinho se preparava, ainda, para rodar um média-metragem para o projeto "Memória do Esporte Olímpico", em parceria com o canal ESPN. A obra trataria de Luisão, massagista que acompanhou a delegação brasileira nos últimos cinco Jogos Olímpicos.
    Agora, Coutinho ganhará uma mostra organizada pela Cinemateca, prevista para março, com debates e curadoria do crítico Ismail Xavier.
    A Cinemateca restaurou o documentário que deu fama a Coutinho: "Cabra Marcado para Morrer" (1985). O DVD deve ser lançado em março pelo Instituto Moreira Salles.
    Na última quinta, o diretor esteve com Moreira Salles, José Carlos Avellar, Carlos Alberto Mattos e Eduardo Escorel, em um estúdio no Rio. Juntos, assistiram a "Cabra". Coutinho fez comentários sobre as cenas do filme que devem entrar nos extras do DVD.
    Mattos conta que, no ano passado, Coutinho revisitou os personagens de "Cabra", para um especial que também deve entrar no lançamento. "Ele estava profundamente tocado por isso", diz.
      opinião
      Cineasta viveu como operário e morreu como deus grego
      O que parece 'só' humildade é uma postura essencialista
      CARLOS NADERESPECIAL PARA A FOLHAA mais longa conversa que eu tive com Eduardo Coutinho foi naquele gênero que ele cultuava e era cultuado, uma entrevista. Ali, os sinais estavam trocados. Eu fazia o papel de entrevistador, e ele, o de entrevistado.
      Foi uma metaconversa, uma metaentrevista, que falou justamente sobre aquilo que estava acontecendo: o próprio encontro verbal de duas pessoas, mediado por uma câmera, para virar filme.
      Num determinado momento do papo-cabeça, o desgrenhado destruidor de papos-cabeças, disse que mesmo acostumado a ser chamado de "mestre" por seus pares, sabia que à boca pequena era alvo de uma crítica pouco generosa de boa parte dos colegas: como é possível reverenciar alguém que faz filmes em que tudo o que acontece é uma pessoa falando, e "só"?
      O ovo de Colombo que Coutinho botou na história do cinema mundial foi justamente o de mostrar que o simples encontro de dois corpos que falam é uma das coisas mais complexas que podem acontecer sob a luz do sol, da lua ou dos refletores.
      E que a gema desses encontros pode resultar não "só" num filme, mas numa cinematografia inteira, numa potente mitologia contemporânea, numa reveladora teoria audiovisual sobre o próprio cinema.
      Nesta época em que as mídias sociais regulam os toques das relações humanas enxugando caracteres e inflamando egos solitários, fazer filmes "só" com pessoas contando pequenas histórias em longas durações é um ato revolucionário.
      A essencialização radical que Coutinho fez na sua arte, o cinema, é análoga à que João Gilberto fez no samba com a Bossa Nova ou ao que Malevich fez na pintura figurativa com o suprematismo. Não é pouco, este pouco.
      Mesmo assim, o mestre não gostava que seu "quase nada que é quase tudo" fosse chamado de "arte". E muito menos que ele próprio fosse chamado "artista". "Sou um operário do cinema", disse ele, "eu só entrevisto pessoas, é o meu trabalho".
      Aqui, o que parece "só" humildade é também uma postura essencialista, recuperadora de potências originais. Nela, o homem que viveu como operário e morreu como deus grego nos lembra que a palavra "trabalho" na Grécia antiga era "poeisis", a mesma que deu origem à palavra "poesia".

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