segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Em busca da (original) utopia - Paulo Nassar

folha de são paulo
PAULO NASSAR
Em busca da (original) utopia
Alguns ucranianos querem a integração com a "civilização", outros querem manter uma singularidade por meio do isolamento no oceano global
A praça da Independência, no centro de Kiev, capital da Ucrânia, concentra hoje o resumo da nova narrativa global. Trata-se de um debate que pode levar a humanidade a dois caminhos opostos: um enorme conflito ou, esperamos, a um consenso sobre um novo modelo de convivência entre os diferentes.
Com uma face voltada para a Europa e outra voltada para a "Mãe Rússia", tal qual o deus romano Janos, o povo ucraniano é o personagem aglutinador das agruras do encontro entre Ocidente e Oriente neste início de terceiro milênio.
Poderíamos dizer também entre o encontro dos incluídos e dos excluídos. Do encontro entre a periferia e o centro. Assim como no Brasil, no Egito e na Turquia, esses levantes parecem nacionais à primeira vista. Parecem a tradução viva da luta de classes de Marx. Porém, observados por uma luneta invertida, ultrapassam as suas fronteiras originais bem como qualquer noção de classe social.
Na camada de gelo e lama que cobre a praça da Independência, uma narrativa belicosa com mais de 3.000 anos de idade --a sangrenta história entre Ocidente e Oriente-- procura os atores que lhe darão corpo e sentido. Marx seria útil ao lembrar, como faz no livro "O 18 de Brumário de Luís Bonaparte", que a história nunca se repete, a não ser como farsa. Não estamos vivendo, como querem muitos analistas, uma nova queda do Império Romano e o consequente início de uma reciclada Idade Média. O que ocorre, supomos, é exatamente o contrário.
O mundo assiste ao renascimento do Império Romano do Ocidente. As novas legiões são as buscas oraculares do Google. Os marcos são os posts globais do Facebook. As caravanas comerciais são as ofertas da Amazon.
A China e suas autoridades, com seus 5.000 anos de história e rígida disciplina confuciana, aparentemente já entenderam esse fenômeno. Não à toa, emularam o Google na forma do site de buscas Baidu. Emularam a Amazon na forma do site AliExpress. Emularam o Facebook na forma do site Weibo. Uma tentativa de sincretismo digital, como uma resposta oriental à vertiginosa ascensão ocidental no mundo da informação.
A narrativa que se desenrola na Ucrânia remete a Robinson Crusoé. Google, Facebook e Amazon são a consolidação do liberalismo ocidental no estado da arte da tecnologia. Versões "high-tec" do náufrago inglês e de sua missão de civilizar o mundo bárbaro.
Alguns ucranianos querem a integração com a "civilização", enquanto outros querem manter uma singularidade por meio da pretensão da existência de uma ilha isolada no oceano informativo global.
O brilhante livro de Daniel Dafoe, escrito no século 18, foi um dos primeiros sinais desse mal-estar da civilização que viria a eclodir no século 20 e suas duas Grandes Guerras Mundiais e seus atos terroristas.
A mesma narrativa do escritor inglês continua a ser o "leitmotif" de Ocidente e Oriente na busca de integração e desintegração.
Há uma nova história que passa a ser contada em Kiev. Esse enredo é baseado também numa ilha, imaginada no século 16, por outro escritor inglês. Trata-se de Thomas More e sua obra "Utopia". Nesse lugar imaginado, a tolerância é a linha mestra da educação e o pacifismo uma condição de existência.
Sem dúvida, depois de 500 anos, parece que chegou o momento de a narrativa de More substituir a de Dafoe na política contemporânea.

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