segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Filmes para ler - Raquel Cozer

folha de são paulo
Filmes para ler
Cinema leva editoras a resgatar clássicos e dar tratamento vip a obras que ninguém queria
RAQUEL COZERCOLUNISTA DA FOLHAForam necessários 160 anos e, ok, uma adaptação para o cinema para que "12 Anos de Escravidão", o relato de Solomon Northup sobre seu período como escravo na Louisiana, nos EUA, chegasse às livrarias nacionais.
A obra de 1853 fez sucesso em seu tempo, mas caiu no esquecimento e se manteve inédita por aqui. Com o filme de Steve McQueen, vencedor do Globo de Ouro e indicado a nove prêmios Oscar, atraiu duas editoras brasileiras.
A Seoman acaba de distribuir sua edição, com tiragem de 10 mil cópias. A da Companhia das Letras sai com 15 mil exemplares no final do mês, dias depois de o filme estrear aqui (veja ao lado).
Esse é só um exemplo de como o mercado cinematográfico influencia o editorial, fazendo-o resgatar clássicos, inflacionando obras que ninguém queria e levando títulos há anos fora de catálogo a receber tratamento vip.
Caso parecido com o de "12 Anos..." ocorreu com "Um Conto do Destino", cuja adaptação estreia junto com o filme de McQueen, em 21/2.
O romance de Mark Helprin, publicado em 1983, foi um dos mais votados por críticos em enquete sobre as melhores ficções dos EUA em 25 anos, feita em 2006 pelo "New York Review of Books".
Nada que chamasse a atenção como a adaptação dirigida por Akiva Goldsman, com Will Smith, Jennifer Connelly e Colin Farrell no elenco. Só daí atraiu a Novo Conceito, que editou 50 mil cópias.
"Com sorte, acontece o que aconteceu com O Lobo de Wall Street', exigindo só uma capa nova para uma obra que já era nossa", diz Soraia Reis, diretora editorial da Planeta.
Lançado em 2008, o livro de Jordan Belfort estava havia anos indisponível. Com o filme de Martin Scorsese, a editora não só imprimiu 10 mil cópias com capa do filme como publicou a sequência "A Caçada ao Lobo de Wall Street", com 6.000 cópias. Já teve de reimprimir ambos.
Mas apostar em filmes não é simples. Na dúvida, Hollywood compra direitos de livros que nunca irá adaptar. "A indústria produz uns 10% do que adquire como opção para filme. Compram para segurar o projeto", diz o editor Marcos Pereira, da Sextante.
Vivian Wyler, diretora editorial da Rocco --que em abril verá estrear a adaptação de seu hit "Divergente", de Veronica Roth--, diz que o risco existe mesmo quando a produção está avançada. "Às vezes, o diretor pula fora, e o filme, em vez de estrear em 150 salas, vai para a locadora."
Em outro extremo, o efeito do filme é visível antes do lançamento. Um dos maiores sucessos da Intrínseca, "A Menina que Roubava Livros", de Markus Zuzak, teve 37 mil cópias vendidas nos 30 dias que antecederam a estreia, em 31/1. No mesmo período de 2013, foram 5.000 cópias.
Mas um dos casos mais inesperados do gênero foi protagonizado pela Sextante. "O Código da Vinci", de Dan Brown, vendia 50 mil cópias por mês quando estreou o filme, em 2006. No mês pós-estreia, as vendas ficaram em 10 mil. As revelações da trama no cinema tiraram o apetite do leitor pelo livro.
12 ANOS DE ESCRAVIDÃO O relato de 1853 de Solomon Northup, negro livre que foi capturado e feito escravo nos EUA, atraiu editoras após inspirar o filme de Steve McQueen, que disputa nove Oscars. Saiu pela Seoman (trad. Drago, 232 págs., R$ 24,90) e chega dia 24 pela Companhia das Letras (trad. Caroline Chang., 264 págs., R$ 22,90)
PHILOMENA O livro de 2009 do jornalista Martin Sixsmith, sobre a busca de uma mulher pelo filho sequestrado 50 anos atrás, deu origem ao filme de Stephen Frears que estreia neste fim de semana no Brasil e concorre a quatro estatuetas. Saiu dois meses atrás pela Verus (trad. Fal Azevedo, 476 págs., R$ 48)
O LOBO DE WALL STREET A autobiografia de Jordan Belfort, preso por crime financeiro, foi lançado em 2008 pela Planeta e estava esgotada até sair o filme de Scorsese, finalista em cinco categorias. Ganhou nova edição (trad. Pedro Barros, 504 págs., R$ 49,90) e a sequência "A Caçada ao Lobo de Wall Street" (trad. Julio de Andrade Filho, 464 págs., R$ 54,90)
A MENINA QUE ROUBAVA LIVROS Um dos maiores sucessos da Intrínseca, publicado em 2007, o livro de Markus Zusak (trad. Vera Ribeiro, 480 págs., R$ 39,90) sempre vendeu bem, mas ganhou impulso com o filme de Brian Percival, indicado ao Oscar de trilha sonora. Só em janeiro, vendeu 37 mil exemplares --ante 5.000 exemplares no mesmo mês de 2013
UM CONTO DO DESTINO O romance sobrenatural de Mark Helprin, de 1983, teve os direitos adquiridos pela Novo Conceito depois do anúncio do longa homônimo com Will Smith, Colin Farrell e Russell Crowe. Sai no próximo dia 21 (trad. Ivar Panazzolo Junior, 720 págs., R$ 36,90), quando estreia o filme
O HOMEM MAIS PROCURADO O thriller de 2008 de John Le Carré, sobre um muçulmano que atrai a atenção de agências de espionagem após o 11 de Setembro, saiu em 2010 pela Record (trad. Marcelo Schild, 350 págs., R$ 55) e tem sua adaptação prevista para junho, com Philip Seymour Hoffman no elenco
A CULPA É DAS ESTRELAS No topo da lista de mais vendidos do país há meses, com 810 mil exemplares vendidos, o romance juvenil de John Green (trad. Renata Pettengill, 288 págs., R$ 29,90), protagonizado por adolescentes com câncer e lançado pela Intrínseca, terá sua adaptação no país em agosto
DIVERGENTE O primeiro livro da série best-seller de distopia de Veronica Roth, publicado pela Rocco em 2012 (trad. Lucas Peterson, 504 págs., R$ 39,50), teve os direitos comprados pela Summit Entertainment em 2011 e estreia em 21 de março, com Shailene Woodley e Kate Winslet

CRÍTICA LIVROS
Memórias de personagem vulgar geram longa invulgar
INÁCIO ARAUJOCRÍTICO DA FOLHAEm primeiro lugar, "O Lobo de Wall Street", o filme, podia servir de exemplo a qualquer professor de roteiros, roteirista ou candidato a.
A tarefa consistia em resumir e transformar em base de imagens as quase mil páginas dos dois livros de memórias de Jordan Belfort, "O Lobo de Wall Street" e "A Caçada ao Lobo de Wall Street".
O desafio consistia em captar o essencial dos livros sem adulterar os fatos. Tratava-se de não "adaptar" (trair), no mau sentido da palavra. E, ao mesmo tempo, de construir a base para uma narrativa à maneira de Martin Scorsese.
O que Terence Winter fez foi, claro, suprimir certas ações e personagens, tornar certos momentos mais didáticos, de maneira a facilitar a compreensão rápida do espectador das sujeiras financeiras em que estava envolvido o fundador da Stratton Oakmont, Jordan Belfort.
Mas tudo que está lá é, basicamente, o que Belfort conta (foi dada mais atenção a "O Lobo" do que à "Caçada"), e os momentos essenciais da narrativa foram preservados.
Ao mesmo tempo, estamos num típico filme de Scorsese: um mixaria (Jordan), com a ajuda de outro (Danny) rapidamente abala Wall Street com sua audácia (não raro desonesta) nos negócios e no modo de vida, até começar a ser atormentado pelo FBI.
Não que Jordan Belfort seja um qualquer. Longe disso. Trata-se de um homem que voltou a inteligência a ganhar dinheiro loucamente, a transar com todas as mulheres que pudesse (de preferência sua própria mulher, a quem chama de Duquesa, e prostitutas em geral), e a ingerir todos os comprimidos de quaaludes, sua droga favorita, que tivesse à sua disposição.
Sua volúpia, o estilo de vida, "as loucuras", como ele chama, tudo que o credenciava a ser um jovem cadáver, nas previsões de Wall Street, está no livro. Inclusive uma retrospectiva percepção da futilidade desse tipo de vida. Inclusive o estilo de vulgaridade exemplar.
Vejamos como se refere a Nadine, a Duquesa, a mãe de seus filhos: "Foram suas pernas que lhe conseguiram o emprego; isso e a bunda, que era mais redonda que a de uma porto-riquenha e firme o suficiente para balançar um quarteirão".
O tom está dado. O que Scorsese fez foi partir desse personagem vulgar para chegar a um filme invulgar. O que faz de Jordan um personagem típico de Scorsese é o fato de sair do nada, tornar-se trilionário em poucos anos, e correr o risco permanente de voltar ao nada (ou, pior, de acabar na cadeia).
O que torna o filme tão particular e tão superior ao livro é que o Jordan do livro é o sujeito, o narrador, enquanto o do filme é personagem: não é mais ele que se vê. Ele é visto (apesar da narração, por vezes, em primeira pessoa).
Com isso, Scorsese serve-se de suas memórias para fazer uma análise sintética, porém aguda, do funcionamento desse capitalismo pós-industrial, no qual o que se compra e vende são, basicamente, quimeras, ficções. O que conta, como explica Mark Hanna, o mestre de Jordan Belfort, é a taxa de corretagem. Essa que vai para o bolso do corretor. É a parte real.
É essa tensão entre real e fictício que faz a base do filme. Pois reais são os filhos, aos quais Jordan tem apego, a Duquesa, e, sobretudo, os agentes do FBI. São estes, aliás, que entram como contraponto na história: a "gente comum", que vive honesta e modestamente. O filme é bem mais incisivo a esse respeito do que o livro, diga-se.
Existe uma diferença sensível entre "O Lobo de Wall Street" e outros filmes sobre esses zé-ninguéns subitamente elevados à riqueza e todo o tempo ameaçados pela autodestruição.
Jordan demonstra como esse mundo de desonestidade mais ou menos intrínseca consegue se recompor mesmo depois de ser apanhado com a mão na massa. Ele é o exemplo, e suas memórias best-seller não existem à toa: mesmo fora do mercado ele ainda é uma máquina de fazer dinheiro. Para isso vive.
O LOBO DE WALL STREET
Avaliação: regular
A CAÇADA AO LOBO DE WALL STREET
Avaliação: regular

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