sábado, 8 de março de 2014

7 anos de escravidão no Brasil [Luiz Gama] - Sylvia Colombo

folha de são paulo
7 anos de escravidão no Brasil
Séries e filme vão contar a história do abolicionista baiano Luiz Gama, que nasceu livre mas foi vendido pelo próprio pai como escravo
SYLVIA COLOMBODE SÃO PAULOEnquanto há filas para ver "12 Anos de Escravidão", vencedor do Oscar de melhor filme, figuras brasileiras de trajetória similar à de Solomon Northup estavam fadadas ao esquecimento ou à reverência apenas de estudiosos.
É o caso do abolicionista Luiz Gama (1830-1882), advogado e ativo republicano que passou a infância como escravo, vendido pelo próprio pai.
"Espero que o sucesso de 12 Anos' alavanque o interesse pela história de Gama e tantos ex-escravos brasileiros", diz a escritora Ana Maria Gonçalves, que trabalha no roteiro de uma série e um filme sobre o personagem.
O livro de Gonçalves "Um Defeito de Cor", que romanceia a vida da provável mãe de Gama, Luiza Mahin, também deve ir à TV. Depois de chamar a atenção do cineasta Fernando Meirelles, o texto pode virar série global, com direção de Luiz Fernando Carvalho.
Gama nasceu na Bahia, de mãe africana e pai baiano. Escravizado, foi enviado ao Sul, exposto em leilões, e acabou em São Paulo, onde serviu o comerciante Antonio Pereira Cardoso por sete anos.
Aos 17, num lance que mistura acaso e persistência, aprendeu a ler e escrever com um pensionista de seu senhor, o estudante de direito Antônio Rodrigues do Prado Júnior. Obteve os documentos que provaram que nascera livre e deixou o cativeiro.
Seu relato dos anos como escravo está em uma carta escrita em 1880 ao amigo Lúcio de Mendonça.
"A carta de Gama é um documento único da história do Brasil. Nos EUA, as narrativas de escravos e ex-escravos estão no nascedouro da literatura negra. Aqui, só conhecemos esse documento de um ex-escravo que tenha se tornado figura pública proeminente", diz Lígia Fonseca Ferreira, professora da Unifesp e especialista na obra de Gama.
Ferreira tem críticas a "12 Anos", mas o considera importante. "Quantos não se fizeram sobre o Holocausto? Muito mais que a escravidão africana, uma história de 400 anos que precisa ser melhor entendida, sobretudo no Brasil."
Luiz Gama defendeu negros nos tribunais e libertou mais de 500
Para estudiosos, parte de sua história pode ter sido inventada para denunciar ilegalidades
Retrato do abolicionista reflete momento de transformação social vivida pelo país em meados do século 19
DE SÃO PAULOOs estudiosos de Luiz Gama insistem que sua história pode revelar mais do que uma trajetória pessoal épica.
Para os historiadores, seu retrato mostraria como o Brasil vivia um momento de intensa transformação social em meados do século 19.
"Na Bahia, havia muita mobilidade, famílias compostas fora do padrão, como a de Luiz Gama, e abertura em termos culturais e morais por causa do porto de Salvador, um dos mais importantes do mundo então", diz a escritora Ana Maria Gonçalves.
"Fã incondicional" de Gama, João José Reis ("A Morte É uma Festa"), o mais importante historiador da escravidão brasileira, diz que nem tudo o que o abolicionista contava sobre si pode ser confirmado com documentos --e que muito daquilo pode ser uma fábula construída.
Por exemplo, Gama dizia ser filho de Luiza Mahin, uma figura símbolo do feminismo negro que teria lutado na Revolta dos Malês (1835).
"Existe a possibilidade de que tenha escrito uma história exemplar e extrema para denunciar casos de escravização ilegal de pessoas livres por ele defendidas nos tribunais", afirma Reis à Folha. Gama foi responsável por libertar mais de 500 negros, a quem prestava serviços grátis como advogado.
"Para pensar o Brasil de hoje, talvez Gama seja mais importante como símbolo do que Zumbi", diz Lígia Fonseca Ferreira. Hoje lembrado em São Paulo apenas pelo meio jurídico, pela maçonaria e por historiadores, o semblante altivo do busto que está no largo do Arouche foi um herói de seu tempo.
Morto aos 52 anos, em São Paulo, a seu enterro, no cemitério da Consolação, compareceram mais de 3.000 pessoas. "Escravos e ex-escravos batiam-se com conhecidos escravocratas para carregar seu caixão", conta Ferreira.
"Sua história é talvez mais inspiradora do que a de 12 Anos', porque ele se colocou na linha de frente do abolicionismo. É uma dramaticidade incrível. Eu quero muito ver esse filme", diz Reis.
O historiador reforça que os arquivos brasileiros estão cheios de "relatos incríveis de pessoas ilegalmente escravizadas" que não teriam sido contados porque abolicionistas brasileiros "preferiram falar pelos escravos".
Já Gonçalves conta, ainda, que era comum negros livres se fazerem passar por escravos, também, para não serem alvo de sequestros e maus-tratos.

Coletâneas reúnem produção do abolicionista
DE SÃO PAULO
A mais completa coletânea de textos de Luiz Gama é o livro "Com a Palavra, Luiz Gama", da historiadora Lígia Fonseca Ferreira (ed. Imprensa Oficial; 304 págs., R$ 55).
Reúne poemas, artigos e cartas. Entre os textos, estão o relato de seus anos como escravo e o comovente artigo de Raul Pompeia escrito quando o abolicionista morreu. Ferreira defendeu sua tese sobre Gama na Universidade Paris 3 - Sorbonne.
A professora da Unifesp também organizou parte de sua obra poética, em "Primeiras Trovas Burlescas de Getulino" (ed. Martins Fontes; 326 págs., R$ 66,98).
Entre as biografias, a principal publicada ainda é "Orfeu de Carapinha - A Trajetória de Luiz Gama na Imperial Cidade de São Paulo" (ed. Unicamp; 280 págs., R$ 29), de Elciene Azevedo.
Há também "Luiz Gama", de Luiz Carlos Santos, para a coleção "Retratos do Brasil Negro" (Selo Negro; 120 págs., R$ 24). "Luiz Gama: O Advogado dos Escravos" (ed. Lettera.doc; esgotado), de Nelson Câmara, tem prefácio de Miguel Reale Júnior.
No terreno da ficção, está "Um Defeito de Cor" (ed. Record; 952 págs., R$ 85), de Ana Maria Gonçalves, que ficcionaliza a vida de Luiza Mahin, que teria sido a mãe de Luiz Gama.
Ainda não se fizeram coletâneas exclusivamente de sua obra jornalística.
Em 1864, ao lado do caricaturista Ângelo Agostini (1843-1910), Gama fundou o semanário "Diabo Coxo", primeiro jornal ilustrado da cidade de São Paulo.

TRECHO
"Oh! Eu tenho lances doridos em minha vida, que valem mais do que as lendas sentidas da vida amargurada dos mártires. Nesta casa, em dezembro de 1840, fui vendido ao negociante e contrabandista alferes Antonio Pereira Cardoso (...).
Este alferes Antonio Pereira Cardoso comprou-me em um lote de cento e tantos escravos; e trouxe-nos a todos, pois este era o seu negócio, para vender nesta Província.
Como já disse, tinha eu apenas 10 anos, e, à pé, fiz toda a viagem de Santos até Campinas. (...)
Em 1847, contava eu 17 anos, quando para casa do sr. Cardoso veio morar (...) o menino Antônio Rodrigues do Prado Júnior (...). Fizemos amizade íntima, e ele começou a ensinar-me as primeiras letras."

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