quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Burocracia restringe acesso de doente com câncer à morfina

folha de são paulo

Estudo mundial mostra que, na América Latina, Brasil é um dos países onde há mais entraves para obter a droga
Excesso de regras e falta de conhecimento dos médicos sobre o remédio estão entre as causas das dificuldades
CLÁUDIA COLLUCCIDE SÃO PAULO
Excesso de restrições, burocracia e desconhecimento estão dificultando o acesso de pacientes a morfina e outras drogas opioides que aliviam a dor do câncer.
A conclusão é de um estudo realizado na África, Ásia, no Oriente Médio, na América Latina e no Caribe que avaliou a disponibilidade de sete opioides considerados essenciais pela OMS (Organização Mundial da Saúde).
Entre eles estão a codeína, a metadona e a morfina. O Brasil figura entre os oito países latino-americanos mais problemáticos, ao lado de outros como Argentina, Peru e Bolívia. O estudo foi publicado na revista "Annals of Oncology" na semana passada. O acesso é gratuito.
OS EMPECILHOS
Na lista de entraves que os brasileiros enfrentam constam leis restritivas, o fato de poucos médicos receitarem a medicação e a pouca oferta nas unidades de saúde.
"A pandemia de excesso de regulação nos países em desenvolvimento torna muito difícil o acesso à medicação básica para as dores do câncer", afirmou à Folha Nathan Cherny, líder do estudo e presidente do grupo de cuidados paliativos da Sociedade Europeia de Oncologia Médica.
Mas a "tragédia" nasce de boas intenções, segundo Cherny. "Em geral, o excesso de regulação é uma medida de precaução para evitar abusos e desvios", explica.
Nos EUA, por exemplo, o abuso e o uso ilícito dos opioides fez recentemente o governo federal aumentar o rigor nas prescrições. O país é responsável por 80% do consumo global desses remédios --dois terços seria ilegal.
Para o anestesiologista Charles Oliveira, vice-presidente do Instituto Mundial da Dor, no Brasil, além da dificuldade de acesso a essas drogas, também há muita desinformação sobre o uso delas tanto por parte da população quanto pelos médicos.
"O paciente e a família pensam que a morfina está restrita a doentes terminais, então rejeitam o uso. Já muitos médicos têm medo [da dependência, por exemplo] ou não sabem prescrevê-la."
Na opinião da médica Maria Goretti Maciel, conselheira da Academia Nacional de Cuidados Paliativos, a morfina é uma droga segura e barata que todo médico deveria saber como administrar.
"Há muito paciente com câncer sofrendo desnecessariamente. Quanto mais cedo iniciar o uso da morfina, melhor o prognóstico. O manejo da dor está associado a uma maior sobrevida."
ACESSO
Oliveira afirma que existe também uma grande dificuldade para o paciente do SUS ter acesso aos opioides fora dos centros de referência.
"Na rede pública, é mais fácil encontrar a metadona, que é mais barata. Mas é preciso fazer um rodízio de medicamentos a cada três ou quatro meses, e o doente não tem como arcar com isso."
Existe ainda uma burocracia para o médico obter o bloco de receituário amarelo, específico para medicamentos controlados. Ele precisa, por exemplo, ir até uma unidade da secretaria da saúde para se cadastrar.
O paciente também enfrente dificuldade, segundo Goretti. "Em São Paulo, só há duas unidades para a retirada do medicamento. Tem que esperar na fila, preencher uma série de formulários e, se faltar algum detalhezinho, precisa refazer a via-sacra."
Segundo James Cleary, os governos nacionais e especialistas da área precisam tomar medidas urgentes para melhorar o acesso aos opioides.
"Elas devem envolver a educação dos profissionais de saúde para o uso seguro e responsável desses medicamentos, a educação do público para desestigmatizá-los e uma melhor infraestrutura para o fornecimento."
Governo diz que normas evitam abuso do remédio
DE SÃO PAULOEm nota, o Ministério da Saúde negou que haja excesso de restrições ao uso de opioides e afirmou que o país segue as resoluções internacionais sobre o tema.
Segundo o ministério, o SUS garante o acesso a essas drogas a quem realmente precisa, mas estabelece normas para garantir a segurança do paciente, evitando automedicação e uso irracional.
São oferecidas a morfina, a codeína e a metadona (de forma ambulatorial e para os pacientes internados).
O ministério explica que, para serem dispensados, são necessários a receita de controle especial (amarela) e um documento que define normas para a prescrição. A receita tem validade de 30 dias.
Mas os hospitais inscritos no programa nacional de assistência à dor ou habilitados em oncologia no SUS podem usar a receita convencional (de cor branca), que é menos restritiva do que a amarela.
O receituário amarelo só é distribuído pelo governo e retirado pelo médico na Vigilância Sanitária. Já o receituário branco pode ser impresso em gráfica comum por médicos ou hospitais.
O ministério explica ainda que os opioides são indicados para determinados tipos de dor e apenas posteriormente a outros analgésicos conforme a escala estabelecida pela OMS (Organização Mundial da Saúde).
A regulamentação sobre o uso de opioides é internacional. Há três convenções das Nações Unidas sobre o controle de drogas que são complementares.
Essas convenções sistematizam as medidas de controle internacional com o objetivo de assegurar a disponibilidade de drogas narcóticas e substâncias psicotrópicas para uso médico e científico, e prevenir sua distribuição por meios ilícitos.
Elas também incluem medidas gerais sobre o tráfico e o abuso de drogas. (CC)

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