domingo, 22 de dezembro de 2013

Suzana Singer - Folha Ombudsman

folha de são paulo
Manchetes que se dissolvem
Sem apuração sólida, títulos que tentam prever o futuro são contestados pelas fontes da informação
Jornais não foram feitos para prever o futuro, nem em final de ano. Duas manchetes recentes da Folha que tentaram adivinhar o que vai acontecer estão sendo, com razão, duramente contestadas.
A primeira delas, do domingo passado, dizia que "Eleição faz Alckmin dobrar gasto mensal com propaganda". A outra, de terça-feira, era "Delator de esquema de espionagem vai pedir asilo ao Brasil".
À primeira vista, os dois títulos parecem até óbvios. Ninguém duvida que o governo estadual --assim como o federal-- vá concentrar os gastos com publicidade no primeiro semestre, até porque a legislação proíbe anunciar nos meses que antecedem a eleição.
No caso do ex-espião Edward Snowden, é fácil deduzir que ele gostaria de viver aqui, já que ele escreveu uma carta ao povo brasileiro e há um abaixo-assinado pedindo ao governo para dar-lhe asilo.
Uma análise detalhada das duas reportagens mostra, no entanto, que conclusões lógicas não são suficientes para sustentar uma manchete que não se desmanche no ar.
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No caso de Alckmin, a Folha cravou que ele vai dobrar o gasto mensal com propaganda em 2014, quando tentará reeleger-se. O dispêndio com publicidade saltaria de R$ 16,1 milhões por mês (2013) para R$ 31,5 milhões (2014). Para chegar a esse resultado, o jornal:
1) dividiu o que foi gasto até 12 de dezembro deste ano por 12 meses;
2) dividiu o que foi orçado em 2014 por seis meses, levando em consideração que é proibido anunciar de julho a outubro.
As duas contas estão equivocadas. No cálculo do montante de 2013, não entraram as despesas a serem pagas até o fim deste mês --entre as quais uma campanha do governo que está sendo veiculada no intervalo do "Jornal Nacional".
No segundo passo, o jornal assumiu que Alckmin vai torrar tudo no primeiro semestre de 2014, sem deixar verba para os meses pós-eleição, o que o governo nega que pretenda fazer.
"Sabemos, por apuração nossa, que o governo estadual planeja concentrar no primeiro semestre o investimento em propaganda. Uma das fontes disse que o plano é gastar o máximo possível até abril", afirma a editoria de "Poder".
Essa apuração em "off' não está na reportagem e é difícil de ser provada, porque se refere a algo que o governo pretenderia fazer.
A reportagem sobre Edward Snowden partia da "Carta Aberta ao Povo do Brasil", obtida com exclusividade pela Folha, em que ele diz que gostaria de ajudar as investigações brasileiras sobre a espionagem dos EUA, mas não consegue porque não tem um lugar permanente para viver.
Na carta, Snowden não faz um pedido de asilo --segundo a reportagem, para não criar um constrangimento com o governo russo, que lhe dá abrigo até 2014.
O jornalista Glenn Greenwald, que deu o furo sobre as ações da Agência de Segurança Nacional dos EUA, tuitou: "A grande imprensa é incapaz de ler uma carta curta antes de fazer uma manchete falsa a respeito? Não é tão difícil...".
A editoria de "Mundo" diz que baseou a manchete em uma apuração em "off", não na carta, mas isso não estava claro no texto.
O jornal poderia ter evitado esse desgaste se destacasse no título o fato de Snowden ter oferecido ajuda para apurar crimes de espionagem cometidos contra o Brasil. Era um ponto importantíssimo, polêmico e... estava na carta.
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Os casos acima se somam a outras manchetes questionadas ao longo do ano --a de maior repercussão foi "Prefeito sabia de tudo, diz fiscal preso, em gravação" (8/11).
Fica a impressão de que, para fazer barulho, a Folha está subindo o tom das manchetes. Não vale a pena. Nenhum jornal de qualidade deve trocar exatidão por repercussão.

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