sábado, 18 de janeiro de 2014

Reconstruindo Salinger - Raquel Cozer

folha de são paulo
Reconstruindo Salinger
Sai no Brasil biografia que revela detalhes íntimos da vida do autor americano que, durante seis décadas, fugiu da exposição pública
RAQUEL COZERCOLUNISTA DA FOLHA
Nos 57 anos em que viveu num chalé em uma cidade de 1.800 habitantes no norte dos EUA, J.D. Salinger (1919-2010) conseguiu feitos dignos de um candidato a ermitão-mor da literatura contemporânea.
O autor de "O Apanhador no Campo de Centeio" (1951) barrou na Justiça a primeira biografia a seu respeito, impediu a divulgação de cartas enviadas a amigos, bloqueou edições piratas de sua obra.
Bastaram três anos de sua morte para que aparecessem duas biografias, um filme, três exposições de cartas e três contos que ele não queria ver publicados tão cedo.
Se em vida Salinger enfrentou baques na luta contra o uso de sua imagem (inclusive pelas memórias da filha e de uma ex-namorada), um forte revés póstumo veio com a biografia "Salinger", de David Shields e Shane Salerno, que sai agora pela Intrínseca.
Lançado em setembro nos EUA, junto com documentário homônimo dirigido por Salerno (no Brasil, estreia em fevereiro), o livro foi atacado por boa parte da crítica pela devassa na vida do autor.
É um prato cheio para quem esperava notícias sobre os anos em que ele se isolou.
Entre relevâncias e irrelevâncias da pesquisa de nove anos de Salerno (roteirista de "Armageddon"), estão dezenas de fotos e cartas inéditas.
Há detalhes sobre a primeira união do autor, em 1945, com a alemã Sylvia --que Salinger, após traumas na Segunda Guerra, apresentou à família como francesa. A biografia levanta a suspeita de que a relação tenha acabado quando ele descobriu que ela era informante da Gestapo.
Na área de irrelevâncias, há a informação de que o escritor tinha um testículo só. Para Salerno, isso explicaria tanto a atração de Salinger por garotas inexperientes quanto sua rejeição à mídia.
Outra informação inédita é a descrição de cinco obras que, em tese, Salinger queria ver publicadas entre cinco e dez anos após sua morte --ou seja, a partir do ano que vem.
Entre elas, uma história de amor na guerra, inspirada em Sylvia, e um manual da filosofia indiana vedanta, à qual o ficcionista se dedicava com afinco. Os três contos que caíram na rede em novembro não integravam esse pacote.
Para Salerno, se a guerra criou o escritor Salinger, a religião o matou. "No início, a vedanta foi boa para sua obra, como se vê em Franny & Zooey' [1961], mas sobrepujou seu talento. O último conto que publicou, Hapworth 16, 1924' [1965], é intransponível", diz o biógrafo à Folha.
Mas a doutrina que ajudou Salinger a rejeitar a superexposição acabou por alimentá-la após sua morte.
Uma das três exposições de cartas feitas desde 2010 pela Morgan Library, em Nova York, trazia missivas dele ao líder Swami Nikhilananda, doadas pelo centro que o escritor frequentava. "A correspondência mostra a evolução de Salinger e sua rígida rotina de escrita", diz o curador da Morgan, Declan Kiely.
É curioso que continue fora de circulação a biografia feita por Ian Hamilton nos anos 1980 e que Salinger conseguiu barrar por deter os direitos de trechos de correspondência ali reunidos.
Meses atrás, um original dessa biografia foi arrematado na casa de leilões Swann por US$ 3.200 --menos que o valor mínimo esperado, US$ 4.000. Talvez porque já se saiba o bastante sobre Salinger.
Escritor é o único nome da histórica Editora do Autor
DA COLUNISTA DA FOLHA
J.D. Salinger, notório ermitão, talvez gostasse de saber que há anos reina sozinho em sua editora brasileira.
Publicados no país desde os anos 1960, 3 dos 4 livros do americano compõem hoje todo o catálogo da Editora do Autor, que resiste num escritório em Ipanema, no Rio.
"Trabalhei com muitos livros, mas estou idoso e já não tenho tanta disposição. Às vezes me oferecem títulos, publiquei uma coisa ou outra, mas desde os anos 1990 me centrei em Salinger", diz o editor Walter Acosta, 96.
Acosta fundou a Editora do Autor em 1960, com Rubem Braga e Fernando Sabino. Logo amigos célebres dos cronistas, como Clarice Lispector e Manuel Bandeira, passaram a publicar pela casa.
Em 1965, os diplomatas Álvaro Alencar, Antônio Rocha e Jório Dauster apresentaram à Editora do Autor sua tradução para "O Apanhador no Campo de Centeio", que saíra 14 anos antes nos EUA.
A casa bancou a publicação e, em 1967, lançou ainda "Franny & Zooey" e "Nove Estórias", sempre seguindo as rígidas normas de Salinger --nada de fotos dele, nada de textos de apresentação etc.
Nessa época, Sabino e Braga já tinham abandonado o barco para criar a Sabiá, levando junto os grandes autores nacionais. Salinger ficou.
"O Apanhador..." está na 19ª edição, com 350 mil cópias vendidas. Os outros dois vendem bem menos. O quarto livro, "Carpinteiros, Levantem Bem Alto a Cumeeira & Seymour: Uma Introdução", é publicado pela L&PM --e saiu nos anos 1980 pela Brasiliense como "Pra Cima com a Viga, Moçada!".

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